
Transplantes Cruzados
Foi no passado dia 20 de janeiro de 2023 que decorreram em Coimbra as Jornadas Nacionais de doação de órgãos, promovidas pelo Serviço de Medicina Intensiva e pelo Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), às quais atendeu o atual ministro da Saúde Manuel Pizarro. Nestas foram revelados os números correspondentes ao ano de 2022, no qual se verificou um recorde no que diz respeito ao número de transplantes de pulmão que perfez um total de 76 órgãos transplantados. Ao todo, no ano passado foram realizados 814 transplantes de órgãos, dos quais 476 foram transplantes renais. Apesar de o país não ter ainda regressado aos números verificados em 2019, é de realçar um ligeiro aumento quando comparado com os valores registados no ano de 2020 e 2021, o que mostra uma recuperação face à situação pandémica vivida.
No que toca à situação mundial, Portugal tem conseguido destacar-se entre os países que mais órgãos coleta e que mais transplantes executa a nível renal e hepático, tendo mesmo disputado com Espanha o número de dadores por milhão de habitante.
Doença Renal Crónica
O elevado número de transplantes renais deve-se em grande parte à prevalência de doença renal crónica (DRC), também conhecida como insuficiência renal, no nosso país, estimando-se que um em cada três portugueses tenha risco acrescido de desenvolver esta patologia, associada a fatores de risco tais como a diabetes, a hipertensão e a obesidade. Esta evolui ao longo de estádios, sendo o quinto o mais grave, o qual se verifica quando a função renal se encontra abaixo dos 10%, inferior a 15 mL/min. Nestes casos é necessário recorrer a procedimentos que permitam uma substituição da função renal tais como a diálise e o transplante renal. No que diz respeito ao último procedimento, o rim transplantado tanto pode ser de um dador vivo como de um dador falecido, sendo que a taxa de êxito apresenta-se maior no primeiro caso do que no segundo, ao ser um rim são, de um doente saudável e no geral mais jovens, uma vez que no caso de dadores falecidos apresentam geralmente idades mais avançadas.

Estádios da Doença Renal Crónica
Para além de um rim, os dadores vivos podem também doar uma parte do fígado, do pulmão e em casos mais raros, parte do pâncreas ou do intestino, tendo primeiro que se determinar se são saudáveis o suficiente para a doação e se a decisão é tomada de forma consciente por meio de testes físicos, psicológicos, sendo também necessárias análises.
Transplantes Cruzados
O problema inerente aos transplantes de dadores vivos é que na maioria das ocasiões, estes são transplantes dirigidos, ou seja, o dador pretende doar o órgão a alguém em específico, a um familiar, ao conjugue ou a um amigo. O que se verifica é que na maior parte dos casos o dador e o recetor não são compatíveis, tendo surgido por isso a hipótese de uma permuta de dadores à qual se deu o nome de transplantes cruzados. Por exemplo, vamos colocar a hipótese de uma mulher que queria doar um rim ao irmão, contudo não eram compatíveis em termos de grupo sanguíneo, havendo um outro par dador-recetor que tinha o mesmo problema. Se a dadora do primeiro par pudesse doar ao recetor do segundo par e vice-versa, estávamos perante um transplante cruzado. O conceito de transplante cruzado foi proposto em 1986 pelo Dr. Felix T. Rapaport.
Esta doação cruzada passa a ser uma opção em casos de incompatibilidade de grupo sanguíneo AB0, em casos de crossmatch positivo ou em casos de incompatibilidade do sistema HLA, permitindo assim que os recetores recebam o rim que lhes é mais adequado e que os dadores vejam o seu desejo de doação concretizado, pois é oferecido aos doentes renais crónicos a possibilidade de transplante mediante a troca de rins entre dois ou mais pares dador-recetor.
A doação renal cruzada encontra-se bem desenvolvida em países onde os transplantes renais são modalidades terapêuticas frequentemente recorrentes como é o caso da Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, Holanda ou Reino Unido, todos países com taxas de sucesso elevadas.

Dr. Felix T. Rapaport

Esquema representativo de doação cruzada
Estas cadeias de doação cruzada levaram à criação do Programa Nacional de Doação Renal Cruzada (PNDRC) que foi implementado em Portugal no ano 2010 tendo em vista o aumento do número de dadores vivos, bem como uma melhoria na resposta às necessidades dos recetores, diminuindo as taxas de rejeição de órgãos. A internacionalização do programa, permitiu que Portugal integrasse, através da South Alliance for Transplants (STA), juntamente com Itália e Espanha um Programa Internacional de Doação Renal Cruzada (PIDRC), coordenado pela Organización Nacional de Trasplantes (ONT), com o objetivo de aumentar as chances de um transplante renal bem sucedido com um dador vivo de pares dador-recetor inscritos nos programas nacionais de cada país.
O que levou à união destes três países num programa comum foi o facto de os programas nacionais de cada país terem um algoritmo de base parecido, o que permite que o cruzamento de dados seja efetuado de uma forma mais simples e, assim, o processo de encontrar um dador compatível seja mais rápido, cuja margem de erro seja menor. Este algoritmo tem por base o que foi introduzido em 1974 por Shapley e Scarf para a resolução de problemas na atribuição de um número finito de agentes a um número finito de objetos indivisíveis com direitos de propriedade.
Geralmente os transplantes são realizados em simultâneo de modo a impedir que um dador desista assim que o seu par tenha recebido o órgão que lhe foi destinado.


Mas não só de transplantes renais são feitas as doações cruzadas, existem outros programas de transplantes de órgãos a nível mundial:
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Coordenado pela Eurotransplant: programa Crossing Boundaries para diferentes órgãos que envolve países como Bélgica, Alemanha, Croácia, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria e Eslovénia;
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Coordenado pela Scandiatransplant: programa Scandi Donor Exchange para diferentes órgãos que envolve países como Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia;
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Coordenado pela British Transplantation Society: programa UK Living Kidney Sharing Scheme dirigido para transplantes renais no Reino Unido;
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Coordenado pela Swiss Transplant: programa Swiss Transplant Cohort Study para diferentes órgãos na Suíça;
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Programa Liver Paired Donation nos Estados Unidos da América dirigido para transplantes de fígado;
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Programa Paired Kidney Exchange Program para transplantes renais na Austrália.
Unidade de Cuidados do Dador da STA
Dador Samaritano
Para além de contemplar pares dador-recetor incompatíveis, os programas de doação cruzada podem também incluir os chamados dadores samaritanos que de forma puramente altruísta doam o seu órgão em prol do bem estar dos outros. A entrada destes dadores no programa permite que sejam gerados novos ciclos, o que por vezes permite uma reação em cadeia por desbloqueio de pares inscritos que estavam antes estagnados por falta de dadores compatíveis.

Dr. Domingos Machado
Exemplo recente disto foi o Dr. Domingos Machado, nefrologista aposentado que decidiu doar o seu rim no fim da carreira. O seu gesto permitiu que um total de 3 transplantes fosse realizado pois possibilitou uma reação com efeito dominó que permitiu que mais dois transplantes, para além do seu, inscritos no programa fossem realizados.